Ano novo, mais e novos desafios para a defesa de direitos digitais

Refletir sobre o ano que passou no campo da defesa dos direitos humanos em ambientes digitais é um exercício que começa com uma análise dos problemas. 2023, como os anos anteriores marcados pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, nos lembrou que situações complexas podem se agravar ainda mais. Este ano mostrou que, quando parece que os desafios não podem aumentar, sempre surgem novos cenários para complicar tudo.

Além de enfrentar a crise climática, cujas consequências incontroláveis estão se tornando cada vez mais evidentes, o mundo teve que lamentar a guerra na Faixa de Gaza. Nesse conflito, a taxa de perdas humanas superou qualquer outra no século XXI, chegando a aproximadamente 250 mortes por dia e totalizando 23.000 palestinos mortos em 100 dias de guerra. Esse imenso custo humano é agravado pelo uso da censura na Internet como uma ferramenta de silenciamento, evidenciado por constantes apagões de Internet e eletricidade e moderação questionável de conteúdo por plataformas que tendem a ser tendenciosas em sua cobertura da situação.

Durante o ano, também vimos como o uso de modelos de Inteligência Artificial (IA), especialmente os generativos, se espalhou maciçamente e com riscos potenciais. Se antes os problemas com essas tecnologias eram a falta de transparência de seus algoritmos e seus vieses discriminatórios, especialmente em sistemas de automação para fins públicos, hoje esses problemas se tornaram mais complexos devido à sua instrumentalização para processos de desinformação e ataques cibernéticos. Essa situação acelerou uma corrida regulatória impulsionada por Estados e organizações internacionais, com a criação de padrões internacionais como os da UNESCO, regulamentações com impacto regional-global como a Lei de IA na União Europeia e iniciativas em vários países latino-americanos como Brasil, Chile, Costa Rica, Peru, entre outros.

 

O esforço regulatório se expandiu para lidar com o poder crescente das plataformas digitais e das corporações por trás delas. A regulamentação dessas plataformas tornou-se uma questão fundamental, impulsionada pela necessidade de restringir seu modelo de negócios baseado em vigilância e coleta de dados extensiva, bem como sua influência política por meio de práticas de moderação de conteúdo e táticas monopolistas. No entanto, essas propostas regulatórias não estão isentas de críticas e preocupações sobre seus possíveis efeitos na liberdade de expressão. O Brasil tem se destacado nessa área com a iniciativa do PL 2630 (Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet), que gerou um papel ativo para a sociedade civil no debate sobre suas vantagens e desafios.

 

Em 2023, a vigilância surgiu como um problema crônico que afeta seriamente os direitos à liberdade de expressão, participação e mobilização. O uso do software Pegasus no México, em El Salvador e em outros países foi revelado em vários casos, afetando diretamente jornalistas e ativistas. Além disso, houve um aumento no uso de tecnologias de vigilância em massa nas cidades, especialmente em contextos como o controle de protestos no Peru e no Equador, bem como no gerenciamento de fronteiras no Brasil, Paraguai e Argentina. Assim, a vigilância se tornou um dos principais obstáculos à democracia.

 

Esses desafios representam apenas parte do complexo cenário enfrentado pelas organizações da AlSur e pela comunidade de direitos digitais em nível regional e global. No entanto, nem tudo são problemas; também há respostas, conquistas e participação ativa de uma sociedade civil cada vez mais capacitada.

 

Aqui está um resumo de alguns dos progressos realizados por nosso consórcio.

Agendas globais, desafios locais

Agendas globais, desafios locais

 

No mundo acelerado da digitalização, diversos atores da Internet, incluindo governos, empresas, órgãos internacionais e organizações da sociedade civil, estão se esforçando para acompanhar o ritmo. O ano de 2023 foi particularmente significativo nesse contexto, caracterizado por vários processos regulatórios globais e pela busca de estabelecer padrões internacionais em áreas como o uso de tecnologias de inteligência artificial, a operação de serviços e plataformas digitais, a luta contra o crime cibernético e a definição das bases para um futuro digital comum.

 

As organizações da AlSur participam ativamente desses processos, orientadas pelo objetivo de garantir que as regulamentações e normas adotadas incorporem uma perspectiva de direitos humanos. Para isso, buscamos influenciar significativamente em diversos fóruns e espaços internacionais, com a convicção de que os diferentes pontos de vista e contribuições baseados em experiências e conhecimentos devem ser considerados e influenciar os instrumentos resultantes.

 

 

 Em março, participamos, por meio da Coding Rights (Brasil), CELE (Argentina), Derechos Digitales (Chile), Fundación Karisma (Colômbia), Hiperderecho (Peru), InternetLab (Brasil) e TEDIC (Paraguai), da Conferência "Internet for Trust", organizada pela UNESCO em Paris, na França. A conferência abordou a regulamentação de plataformas, uma questão importante para democracias, vidas e organizações em todo o mundo.

 

Entre março e maio, a AlSur esteve envolvida no desenvolvimento de sua contribuição para o documento do Pacto Digital Global (GDC), uma consulta aberta liderada pelo Enviado Técnico do Secretário Geral da ONU que fará parte da Cúpula para o Futuro. Nossas contribuições abrangeram uma ampla gama de questões: desde a aplicação dos direitos humanos on-line, com foco na liberdade de expressão e vigilância, até a conexão de todas as pessoas e escolas, a proteção de dados e a promoção da regulamentação da inteligência artificial.

 

Outro processo importante foi o Comitê AdHoc da ONU para desenvolver a Convenção Internacional contra o Crime Cibernético. Esse processo, que envolveu seis consultas com organizações credenciadas, atraiu a atenção de várias organizações, como a Derechos Digitales, a R3D e a Hiperderecho. Além disso, na AlSur, procuramos articular estratégias internas de advocacy, razão pela qual organizamos uma sessão fechada com representantes dos governos do Chile, Peru, Bolívia, República Dominicana, Costa Rica e Panamá durante a RightsCon para influenciar suas perspectivas e coordenamos um documento de propostas da AlSur (Derechos Digitales, Ipandetec, Hiperderecho e R3D) para expressar nossas preocupações sobre o texto do documento e fazer sugestões.

Atualmente, estamos concentrados na coordenação de ações relacionadas à regulamentação de inteligências artificiais. Por isso, temos trabalhado na identificação dos principais espaços internacionais de advocacy sobre essa questão, monitorando o andamento das discussões em nossos países e elaborando conjuntamente uma reflexão a ser lançada em breve.

 

Fortalecimento interno

 

Após vários anos de pandemia, em que a virtualidade foi normalizada, 2023 foi mais um ano de reuniões presenciais. Assim, as organizações da AlSur puderam se reunir e participar de conversas presenciais em pelo menos quatro ocasiões:

 

  • Em janeiro de 2023, organizamos um retiro estratégico com todas as organizações membros na cidade de São Paulo, no Brasil. Durante esse retiro, procuramos abordar a direção de alguns de nossos projetos, avançar no desenvolvimento de nosso documento de estratégia programática e planejar os próximos passos da AlSur em fóruns internacionais. Essas decisões orientaram todo o trabalho do trimestre seguinte.
  • No meio do ano, em junho, organizamos uma reunião presencial na Costa Rica, por ocasião da conferência RightsCon2023. Nessa reunião, analisamos o progresso do nosso planejamento.
  • Em agosto, organizamos uma reunião interna em Buenos Aires, onde dialogamos sobre nossa governança interna e decidimos fortalecer nossa estrutura.
  • Em outubro, em Kyoto, Japão, após o IGF 2023, organizamos um dia de trabalho interno intensivo para revisar nossos documentos de governança interna e o progresso, finalizar o desenvolvimento da estratégia programática da AlSur e aprofundar o debate sobre as implicações da participação significativa das organizações da AlSur em fóruns internacionais.
  • Além disso, ao longo do ano, fortalecemos nossos canais externos de comunicação e disseminação, enfatizando a divulgação de nossos blogs e eventos por meio de nossas redes sociais.

 

Outra ação digna de nota para o nosso consórcio foi a organização e execução de uma primeira versão do nosso curso temático de integração para nossos membros. O curso "onboarding", como o chamamos, foi um processo liderado pelo CELE e pelo InternetLab que nos permitiu ter um currículo atualizado sobre os principais debates na governança da Internet, desenvolver capacidades nas equipes das organizações do AlSur e promover um maior encontro. Uma sessão presencial foi realizada na Universidade de Palermo, em Buenos Aires, seguida de uma versão on-line. Esperamos repetir a experiência em 2024 e projetar essa experiência para toda a comunidade de direitos digitais da região no futuro.

 

No nível das comunicações, tivemos um crescimento significativo. Apesar dos desafios enfrentados na plataforma "X" (anteriormente conhecida como Twitter), desde outubro de 2022, nossa conta X teve um aumento notável de seguidores, de 672 para 2.664. Mesmo com as restrições atuais da plataforma, conseguimos manter uma interação orgânica consistente e eficaz.

 

Além disso, 2023 marcou o lançamento de nossa conta no LinkedIn, atingindo um total de 15.812 pessoas ao longo do ano. Essa nova plataforma provou ser um canal de comunicação eficaz, especialmente durante eventos de destaque, como Internet 4 trust, Global Digital Compact, RightsCon2023 e IGF 2023, onde observamos picos significativos na interação com nosso público.

 

Próximos desafios em tempos de agitação democrática

Nos próximos dois anos, é provável que a América Latina seja mais ativa nos debates sobre digitalização, tanto devido à influência dos processos regulatórios globais quanto aos altos e baixos de seu momento político. Com vários processos eleitorais em andamento e governos recentes buscando estabelecer suas visões, a discussão sobre tecnologias e seus impactos provavelmente estará no olho do furacão.

Os possíveis retrocessos na Argentina, no Peru e no México, além das discussões sobre legislação estrutural em muitos outros países, como Brasil e Chile, implicarão em um esforço maior de monitoramento por parte de nossas organizações.

Por outro lado, 2024 também será um ano de grandes debates globais e regionais. Entre janeiro e fevereiro, será encerrado o processo de discussão da Convenção Internacional contra o Cibercrime, um documento que já está gerando muitas preocupações. Em abril, ocorrerá o evento NetMundial+10, promovido pelo Brasil, que buscará reunir vozes do Sul Global em torno de uma agenda de governança da Internet que, juntamente com a presidência pro tempore do G20, colocará o Brasil em uma posição de potencial influência na América Latina. Ao mesmo tempo, ao longo do ano, haverá vários eventos preparatórios para a Cúpula do Futuro das Nações Unidas, culminando o processo de elaboração do Pacto Digital Global.

Nesses contextos, os desafios são muitos, portanto, mais do que nunca, a função de articulação do nosso consórcio faz ainda mais sentido para garantir que as vozes do Sul estejam presentes.

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