Os passos da AlSur rumo a 2023

No auge da pandemia da COVID-19, o consórcio de 11 organizações do meio acadêmico e da sociedade civil, AlSur, trabalhou coletivamente para fortalecer sua estratégia para os próximos anos e articular uma perspectiva do sul global sobre os impactos das tecnologias nos direitos humanos.

Durante todo o ano de 2022, observamos vários eventos que marcaram a agenda internacional. O principal destes no início do ano foi a invasão da Ucrânia, um evento que sem dúvidas gerou uma crise geopolítica com repercussões globais. Contudo, a região, por sua vez, passou por importantes processos eleitorais na Colômbia, Chile e Brasil, agravando as crises políticas, como foi o caso do Peru, e os debates sociais tensos. Vários desses momentos exigiram uma reflexão constante e ações específicas por parte das organizações do consórcio.

Em termos de regulamentação, em nível internacional, as negociações de um novo tratado sobre crimes cibernéticos na ONU e a aprovação do Segundo Protocolo Adicional à Convenção de Budapeste foram objeto de discussão, tanto pelo seu escopo, quanto por suas consequências. Várias organizações da AlSur estiveram presentes ao longo destes processos. Em parceria com a Electronic Frontier Foundation (EFF), publicamos o relatório "Evaluating the new Protocol to the Convention on Cybercrime in Latin America". Com este relatório procuramos fornecer elementos que, no momento dos debates nacionais para a ratificação deste novo instrumento, ajudarão a tomar decisões informadas sobre o acesso transfronteiriço a dados pessoais e suas implicações para os direitos humanos e as liberdades fundamentais.

A vigilância em massa continua sendo uma questão preocupante dada sua implementação indiscriminada e não transparente. Em 2021, publicamos o relatório "Reconhecimento facial na América Latina: tendências na implementação de uma tecnologia perversa", no qual as organizações da AlSur mapearam e analisaram pelo menos 38 iniciativas existentes utilizando tecnologias de reconhecimento facial na região. Já em 2022, vimos desenvolvimentos positivos com a declaração de inconstitucionalidade do Registro Nacional de Usuários de Telefones Celulares (PANAUT) no México e o sistema de reconhecimento facial na Cidade Autônoma de Buenos Aires. Entretanto, estas tecnologias ainda estão sendo consideradas por diferentes governos e seu desenvolvimento requer um monitoramento constante.

A moderação de conteúdo foi objeto de várias discussões durante o ano. A desinformação e a responsabilidade das autoridades foi abordada no ano passado no ensaio "La mentira de los funcionarios, ¿tiene patas cortas o efectos largos?" conduzido pelo CELE e pelo Escritório Regional para a América do Sul do Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Em 2022, o R3D do México produziu para a AlSur o documento "Content moderation from an Inter-American perspective", que aborda os interstícios e complexidades dos padrões interamericanos sobre liberdade de expressão. Ele introduz as limitações da liberdade de expressão, avanços na moderação de conteúdo e lança luz sobre aspectos de auto-regulação, co-regulação e regulamentação pelos Estados, em um momento de grande debate sobre o impacto do discurso online em nossas democracias.

O tema também esteva constantemente na agenda devido à compra da plataforma Twitter pelo bilionário Elon Musk. Os anúncios e decisões do atual proprietário do Twitter levantaram preocupações devido a sua perspectiva absolutista sobre a liberdade de expressão. Que assumiram a forma de demissões massivas de pessoas encarregadas da moderação de conteúdo e políticas de direitos humanos, restituição de contas de personalidades como Donald Trump, cobranças para verificação de contas, entre outros, que demonstraram um interesse mínimo na gestão responsável para mitigar possíveis abusos e riscos no uso do Twitter. Em dezembro, Musk decidiu fechar o Conselho de Confiança e Segurança, razão pela qual protestamos por sua importância em possibilitar o diálogo entre as equipes que administram a plataforma e a sociedade civil.

Além desses eventos, houve outros de grande relevância para os países da América Latina que foram mencionados pela Derechos Digitales em seu relato do ano 2022. Destacamos o aumento dos casos de espionagem de jornalistas, a criminalização e perseguição de ativistas - como o caso de Ola Bini, no Equador - e os debates sobre regulamentação em diferentes países, incluindo a regulamentação de proteção de dados no Paraguai, Chile, Argentina, identidade digital e a lei de zero-rating na Colômbia ou a lei de Inteligência Artificial no Brasil.

Imersas nesse contexto, as organizações da AlSur procuram em 2022 repensar as fundações que nos uniram como um consórcio e, com base nestas fundações, projetar nossas ações futuras. Nos últimos seis anos, a AlSur tornou-se um espaço diversificado para discutir uma agenda comum de ação, realizar pesquisas com um foco regional e promover a defesa coordenada em fóruns globais. Entretanto, após dois anos de mudanças globais pandêmicas e complexas, foi necessário um novo planejamento interno para representar as perspectivas e visões das organizações membros.

O fortalecimento interno da AlSur foi, portanto, construído a partir do desenvolvimento de uma nova estratégia para os próximos quatro anos, que foi elaborada através de um processo em várias etapas. Isto culminou, em setembro, em uma oficina anual de coordenação na cidade de Buenos Aires - a primeira reunião presencial das organizações Al Sur desde a pandemia. Como resultado, pudemos estabelecer uma agenda comum na qual alinharemos nossas ações futuras em três áreas temáticas: a) Acesso à Internet; b) Liberdade de expressão e moderação de conteúdo; c) Privacidade e tecnologias de vigilância.

Ademais, durante o ano, as organizações AlSur priorizaram o fortalecimento de sua defesa em fóruns internacionais como o Global Network Initiative (GNI), Comitê Assessor da Sociedade Civil para a Sociedade da Informação (CSISAC-OECD), Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Fórum da Sociedade Civil da Rede Ibero-Americana de Proteção de Dados (FSC-RIPD), bem como espaços de defesa internacional como o RightsCon, Fórum de Governança da Internet (IGF) e a Conferência sobre Proteção de Dados Pessoais na América Latina (CPDP - Latam). Nesses casos, o consórcio AlSur procurou tornar visíveis as preocupações com os direitos humanos que são comuns na região, para que elas não sejam apenas parte da discussão global, mas também apareçam concretamente nos instrumentos de defesa que são úteis não apenas para os membros do consórcio, mas também para toda a sociedade civil e partes interessadas.

A médio prazo, e com base em nossa nova estratégia, procuramos fortalecer nossas ações em pelo menos duas questões.

Por um lado, notamos como as desigualdades no acesso e uso das tecnologias se ampliaram e se tornaram mais proeminentes desde a pandemia. O acesso justo a conexões significativas à Internet tornou-se novamente uma questão crítica para o desenvolvimento e as oportunidades das pessoas, e precisamos discutir de novo e gerar iniciativas mais direcionadas para superar a divisão digital no sul global.

Por outro lado, detectamos uma influência crescente de ferramentas para automação, previsão e geração de conteúdo através da implementação de formas de Inteligência Artificial (IA). A IA tem aplicações diretas em moderação de conteúdo, vigilância em massa, tomada de decisões, entre outras questões que temos analisado nos últimos anos. Apesar dos problemas associados à IA com relação a seus enviesamentos, falsos positivos e possíveis avarias, vários países da América Latina fizeram progressos na adoção ou desenvolvimento de estratégias para implementar essas tecnologias para diversos fins. O uso indiscriminado dessas tecnologias sem estruturas éticas e baseadas nos direitos humanos pode gerar múltiplos impactos na sociedade.

Em relação a ambas as questões, é importante ressaltar que nossa pesquisa mostrou uma sub-representação das perspectivas latino-americanas nos debates globais que estão ocorrendo. Em vários fóruns internacionais, estão sendo desenvolvidas recomendações e normas que procuram influenciar a formulação de políticas, mas não levam em conta as realidades locais. Portanto, é necessário articular esforços, perspectivas e capacidades a fim de conseguir uma voz com maior impacto.

O consórcio AlSur está em fase de consolidação e procura tornar-se um espaço de grande influência para políticas públicas regionais e internacionais sobre questões tecnológicas e para o reconhecimento dos direitos humanos em ambientes digitais a partir de uma perspectiva sensível à diversidade de gênero, etnia e classe. Através da nova estratégia que estamos construindo, o ano de 2023 será o momento para alcançarmos esta consolidação.