Carta aberta da AlSur sobre a Convenção Internacional sobre Crimes Cibernéticos

A AlSur e suas organizações membros pedem aos Estados latino-americanos que não adotem ou ratifiquem a primeira Convenção das Nações Unidas sobre Crimes Cibernéticos, pois ela viola suas obrigações internacionais de direitos humanos.

Expressamos nossa profunda preocupação com o texto da Convenção Internacional sobre Crimes Cibernéticos adotada em 8 de agosto. Ao longo de dois anos e meio, dedicamos tempo e conhecimento especializado durante o processo de elaboração para garantir que o projeto respeitasse as normas de direitos humanos existentes, os padrões do sistema interamericano, os princípios da Carta da ONU e o Estado de Direito. Entretanto, o texto adotado é um retrocesso em relação a esses padrões de direitos humanos.

Com base em nossa experiência na defesa dos direitos humanos e dos direitos digitais na região da América Latina, fornecemos evidências de que as leis nacionais e regionais sobre crimes cibernéticos são usadas com muita frequência para perseguir injustamente jornalistas e pesquisadores de segurança, reprimir opiniões críticas e colocar em risco os defensores dos direitos humanos. Durante todo esse processo, insistimos que a luta contra o crime cibernético não deve ser feita em detrimento dos direitos humanos, da igualdade de gênero e da dignidade das pessoas que serão afetadas por essa Convenção. Infelizmente, o texto adotado legitima a vigilância em massa e permite a criminalização em nível nacional e internacional. Acreditamos firmemente que a entrada em vigor desse tratado aumentará significativamente o risco de abusos e violações dos direitos humanos.

Identificamos que esse tratado cria os seguintes riscos aos direitos humanos:

Amplo escopo de aplicação

O principal objetivo da criação desse tratado, mencionado anteriormente, era combater o crime cibernético. Entretanto, seu escopo legal vai além dos crimes estritamente cibernéticos. A Convenção e os poderes de vigilância que ela permite se aplicam a qualquer crime cometido por meio de tecnologias da informação, bem como a qualquer crime grave, definido como aqueles com penas de mais de 4 anos. Esse tratado é um cheque em branco para que os Estados monitorem os cidadãos e compartilhem suas informações pessoais internacionalmente.

Poderes invasivos de vigilância

A Convenção proposta cria uma estrutura jurídica que permite a vigilância, o armazenamento e a troca de informações entre fronteiras. O texto permite a interceptação secreta de dados de tráfego em tempo real sem notificar as pessoas afetadas por essas medidas.

Também permite que os Estados exijam que qualquer pessoa divulgue informações confidenciais sobre indivíduos ou sistemas críticos. Além disso, autoriza o compartilhamento excessivo de informações para cooperação na aplicação da lei, além de investigações criminais específicas, sem estabelecer garantias claras e explícitas de proteção de dados e direitos humanos.

Essas medidas prejudicariam a confiança em comunicações seguras e violariam os padrões internacionais de direitos humanos, incluindo requisitos de autorização judicial prévia e os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade.

Proteções e salvaguardas insuficientes

A Convenção proposta carece de salvaguardas suficientes para garantir a proteção dos direitos humanos. Embora o texto atual afirme que os Estados devem implementar esse tratado de acordo com a lei internacional de direitos humanos, as salvaguardas para garantir o cumprimento das obrigações do texto são fracas e insuficientes.

É alarmante que as disposições relacionadas às salvaguardas máximas não incluam os princípios de legalidade e necessidade. Da mesma forma, a redação do texto abre a porta para que essas salvaguardas não sejam aplicáveis a questões de cooperação internacional. Isso compromete a capacidade de garantir que as medidas contra o crime cibernético respeitem os princípios de legalidade, necessidade e proporcionalidade e ofereçam proteção adequada aos direitos humanos.

Falta de integração efetiva de gênero  

A Convenção proposta não integra efetivamente a perspectiva de gênero, o que é fundamental para evitar seu uso em detrimento dos direitos humanos com impactos diferenciados por gênero. Embora mencionada no preâmbulo, essa perspectiva não é aplicada de forma transversal a todos os artigos, mas foi excluída de aspectos críticos como direitos humanos, salvaguardas e proteção de dados. As únicas referências ao gênero são limitadas à assistência às vítimas e às medidas preventivas, o que é insuficiente.

O texto da convenção traz riscos significativos, com amplos poderes de monitoramento que poderiam afetar desproporcionalmente os indivíduos com base no gênero. Os Estados devem garantir que a convenção seja consistente com seus direitos humanos e obrigações de igualdade de gênero, ou correm o risco de ficar aquém de seus compromissos internacionais.

Grave retrocesso para o sistema interamericano

A Convenção representa um grande retrocesso na estrutura do sistema interamericano de direitos humanos para a proteção da privacidade e da liberdade de expressão. A recente decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso CAJAR v. Estado Colombiano ressalta a importância de proteger o direito de defender os direitos humanos e salvaguardar a proteção de dados, inclusive em contextos de inteligência estatal. A decisão reconhece que os indivíduos têm o direito de controlar seus dados pessoais em registros públicos e estabelece a obrigação de autorização judicial prévia para atividades de vigilância. Ela também destaca a necessidade de proteção especial para jornalistas e advogados, salvaguardando suas comunicações e fontes.

Esse precedente e a jurisprudência interamericana são particularmente relevantes para os Estados latino-americanos, uma região historicamente afetada pela repressão estatal contra ativistas, jornalistas, defensores de direitos humanos e pesquisadores. Na América Latina, a defesa da democracia e do Estado de Direito tornou-se perigosa devido aos mecanismos estatais de criminalização e vigilância. Esses instrumentos impedem o exercício dos direitos civis e têm sido usados para silenciar vozes críticas.

Atualmente, há uma preocupante ausência de instrumentos legais com uma abordagem diferenciada de gênero e direitos humanos que limitem o uso arbitrário de tecnologias de vigilância. Em vez de restringir a perseguição judicial de vozes dissidentes, a legislação recente facilitou seu uso injustificado. Várias organizações latino-americanas denunciaram perante a CIDH [1] casos de perseguição judicial a jornalistas, ativistas, mulheres e pessoas LGBTQIA+, bem como o uso indevido de spyware e ferramentas como a Osint em investigações.

Os Estados devem levar em conta esses riscos à dignidade de seus cidadãos e à soberania de suas nações. Um novo tratado não deve validar a criminalização de condutas legítimas, nem práticas de vigilância intrusivas que prejudiquem os direitos humanos e a igualdade de gênero.

Pedimos aos Estados que respeitem suas obrigações internacionais e se alinhem às diretrizes do sistema interamericano. Portanto, pedimos aos Estados latino-americanos que não adotem ou ratifiquem a primeira Convenção da ONU sobre crimes cibernéticos por ser contrária às suas obrigações internacionais de direitos humanos.

[1] Eles denunciaram perante a CIDH o avanço do “assédio judicial” contra jornalistas na América Latina. Clarín. Disponível em:                 https://www.clarin.com/politica/denunciaron-cidh-avance-acoso-judicial-periodistas-america-latina_0_ en4HJXFUSv.html. 

Artigo 19: Acoso judicial a periodistas y defensores(as) de derechos humanos, la víctima es la libertad de expresión (Assédio judicial a jornalistas e defensores(as) de direitos humanos, a vítima é a liberdade de expressão). Disponível em:                                             https://articulo19.org/acoso-judicial-a-periodistas-y-defensoresas-de-derechos-humanos-la-victima-es -la-libertad-de-expresion/.